Para somar nas homenagens do Julho das Pretas da Adufs, que destaca as trajetórias de docentes negras, trazemos o depoimento da professora Elizete Silva, decana do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia (DCHF/UEFS), que ingressou na universidade ainda na década de 70, período em que os desafios impostos pelo racismo eram ainda mais escancarados. Isso ficou demarcado para a docente desde o ato da sua contratação:
“No início da minha carreira docente enfrentei alguns percalços e racismo, também. Quando fiz concurso na UEFS, em 1977, bem jovem, havia funcionários e funcionárias mais antigos, mais preconceituosos, talvez das elites feirenses que pensavam que a Universidade era espaço apenas de brancos da elite. Quando fui assinar o contrato e levei a minha carteira de trabalho na administração perguntei à funcionária que me atendeu se naquele local era onde assinava o contrato de trabalho, ela olhou para mim e respondeu, ‘não estamos contratando ninguém você se enganou’. Retruquei e acrescentei, não a senhora não entendeu: eu sou professora e acabei de passar no concurso de História e me indicaram esta sala para assinar o contrato com a UEFS. A funcionária era uma senhora socialmente branca, meia idade, e me respondeu pedindo mil desculpas, não sabia que eu era professora, pois eu era tão jovem! Lhe respondi ofendida e irônica, com meu cabelão crespo, sandália de couro e vestidinho simples: ‘pois é, tão negra, tão simples, não poderia ser uma professora!’ Ainda bem que esta senhora foi transferida para a UNEB, não tive o desprazer de conviver com ela”.
A relação com os estudantes também foi marcado por episódios de violência racista que a docente enfrentou também fora da UEFS: “Também fui professora de História na UFBA e alguns alunos que tinham notas baixas acrescentavam na raiva , impropérios racistas. Um deles escreveu uma carta anônima à Professora Elizete de História Antiga, que o havia reprovado e que não merecia compor o professorado da UFBA, que meu lugar era o Largo de Amaralina, vendendo acarajé com as baianas, isto é, o lugar das pretas era de subalternização vendendo petiscos na rua e não no universo intelectual universitário! Fiquei muito irada! Como desagravo, o Colegiado de História fez um documento denunciando o racismo do estudante, o qual foi lido em todas as classes do Curso de História e afixado no mural da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA”.
A mudança foi acontecendo ao longo dos anos e, para a professora Elizete, é perceptível o impacto das políticas de combate ao racismo, acesso, permanência e inclusão: “Tudo isso foi no século passado, atualmente, percebo uma mudança, uma convivência mais igualitária, sem a supremacia e ataques dos socialmente brancos! Ainda bem que mudou, especialmente com os Programas de Ações Afirmativas para afrodescendentes e indígenas que transformou as Universidades em espaços mais democráticos e acessíveis aos trabalhadores afrodescendentes, como eu e a minha família de operários e operárias fumageiras de Muritiba”.
As políticas de Ações Afirmativas tiveram um papel central para as transformações percebidas: “Sempre fui uma entusiasta das Ações Afirmativas: desde o início da implementação de Comissões e Projetos inclusivos na UEFS tenho participado e incentivado meus estudantes a se engajarem nas atividades com perfil de inclusão social. Nos meus 44 anos de UEFS posso dizer que temos uma maioria de estudantes afrodescendentes nos diversos cursos e abrimos as portas aos indígenas, aos egressos da escola pública, aos ciganos e às pessoas LGBTQIAPN+. Cumprimos um princípio defendido pelo Mais UEFS: uma Universidade Socialmente Referenciada! Lembro de uma colega negra da UNICAMP, que dizia ser a UEFS a instituição universitária mais negra que ela conhecia e eu também! Ainda precisamos melhorar as ações de permanência estudantil, melhorar o serviço do Restaurante Universitário e das Residências dos Estudantes, mas é fato que os mesmos tem sido fundamentais para a inclusão de jovens estudantes das camadas trabalhadoras”.
Os estudos das relações raciais estão intrinsecamente ligados ao exercício da sua profissão, não apenas pela sua condição de mulher negra, mas também pelas disciplinas que ela assume na docência: “[Estes temas] estão totalmente relacionados com a História do Brasil, que é o componente que me dedico ao estudar o sistema escravocrata e o racismo que a sociedade brasileira herdou do seu passado colonial. Cito sempre Florestan Fernandes, o grande sociólogo militante: só é possível entender a sociedade brasileira analisando a escravidão. Ao ministrar os componentes História das Religiões e Campo Religioso Brasileiro faço menção à supremacia do Cristianismo, às perseguições da Inquisição como parte do Racismo Religioso e à desqualificação pelos brancos católicos e posteriormente dos protestantes da religiosidade africana e indígena, como superstições e feitiçarias. Nos últimos anos tenho pesquisado, como historiadora, e militado como cidadã contra o Racismo Religioso, especialmente dos Evangélicos Fundamentalistas contra as Religiões de Matrizes africanas e Indígenas”.