Docentes apontam racismo no ambiente acadêmico e necessidade de discutir o tema nas universidades

25/11/2022

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Racismo estrutural no Brasil também se reflete nas universidades

O racismo estrutural no Brasil também se reflete nas universidades, nas quais predominam uma visão de mundo e de ciência essencialmente europeia, de supremacia branca. Em função da mobilização do povo negro, ações afirmativas conquistadas reduziram a desigualdade no acesso e permanência deste no espaço acadêmico, a exemplo da implementação da política de cotas para a chegada ao ensino superior público por meio da reserva de vagas. O entendimento é das professoras Rosineide Cristina de Freitas, lotada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), e Marluce de Lima Macêdo, que leciona na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Ambas ainda defendem a continuidade da luta para a desconstrução de discursos e práticas racistas neste ambiente.

 

Rosineide Cristina de Freitas e Marluce de Lima Macêdo foram as debatedoras da mesa “Dez anos a mais: a experiência pioneira da Política de Cotas da UERJ e UNEB”. O evento, organizado pela diretoria da Adufs para marcar o 4º Novembro Negro da Uefs, aconteceu na quarta-feira (23). A mediadora da mesa foi a professora da Uefs, Gracinete Souza, que resgatou a resolução Consu 034/2006 para lembrar que desde 2006 existe na instituição uma normativa que estabelece a reserva de vagas para os cursos de graduação da Uefs, para grupos historicamente excluídos, realizada através do Processo Seletivo 2007.1. A docente também falou sobre a Resolução CONSEPE 088/2021, que dispõe sobre a Política de Ações Afirmativas nos Cursos de Pós-Graduação stricto sensu e lato sensu da Uefs destinada a grupos historicamente excluídos.

 

Ao apresentar as debatedoras da mesa, Gracinete Souza fez um breve histórico sobre a sua experiência enquanto estudante e docente na educação pública superior e ressaltou que enfrentou e ainda enfrenta muita resistência por parte de diversos membros da comunidade acadêmica. “A presença de negros, principalmente mulheres, nas engenharias é muito pequena. E eu, até hoje, ainda tenho de provar a minha capacidade intelectual. Estou aqui, inteira, mas, o racismo interfere negativamente na nossa saúde”, queixou-se a professora, que quando estudante foi uma das primeiras bolsistas de iniciação científica da Uefs.



Professoras Rosineide Cristina (esquerda), Marluce de Lima Macêdo e Gracinete Souza 


 

Uneb

Conforme a fala da docente da Uneb, o racismo aparece não apenas na limitação ao acesso dos negros nas universidades, mas também quando o conhecimento produzido por eles é desconsiderado nestes espaços. Marluce de Lima ainda expôs como o discurso meritocrático camufla o pensamento escravocrata e a reprodução da desigualdade, além de provocar ainda mais tensão no debate sobre o sistema de cotas nas instituições públicas de ensino superior. Na Uneb, o sistema foi implantado como política afirmativa pelo CONSU com a Resolução nº 196/2002, que estabelece e aprova as cotas para ingresso da população afrodescendente, oriunda de escolas públicas, nos cursos de graduação e pós-graduação. A Universidade do Estado da Bahia foi a segunda do país a adotar cotas étnico-raciais, meses após o pioneirismo da Uerj. O sistema foi criado em âmbito nacional por meio da Lei n° 12.711, em agosto de 2012.

 

“As instituições de ensino do país, em todos os níveis, dão continuidade à supremacia do discurso escravocrata, da branquitude e do colonizador e apostam na destruição do nosso saber, memória e capacidade de luta. A história do povo negro foi contada a partir da lógica racista, de um falso discurso de igualdade e de meritocracia. Com base nesta linha de pensamento, as oportunidades são dadas igualmente a todos e somente os capazes conseguem ter acesso e permanecer na universidade. Antes de as cotas serem aprovadas pelo Consu, já havia um debate interno acirrado e conflituoso porque os posicionamentos racistas escondiam-se nos discursos meritocráticos. O entendimento é de que as cotas foram um presente para os negros, o que não é verdade. Para desconstruir esse pensamento e disseminar a informação sobre a importância das cotas dentro destas instituições, organizamos projetos, rodas de conversa, artigos, pesquisas e seminários. Foi e ainda é preciso desconstruir todo um passado da escravidão e as sequelas disso. Existe racismo em nossas instituições e nós precisamos combatê-lo”, expôs a professora.

 

Conforme a explanação de Marluce de Lima, em se tratando da Uneb, que possui 24 campi, sendo 23 deles no interior baiano, o projeto tem caráter ainda mais representativo. “A estrutura de multicampia da Uneb exigiu a inclusão de diversos sujeitos ausentes das universidades, até mesmo porque, na Bahia, grande parte da população é rural e negra, excluída dos espaços de formação não somente no ensino superior. A política de cotas não só traz parte desta população às universidades, como colabora com o combate ao racismo nas nossas instituições. A partir das cotas discutimos em cada departamento, com autonomia, determinados projetos e políticas. Um dos mais importantes foi a Pró-Reitoria de Ações Afirmativas. Fui a primeira pró-reitora deste setor, nascido como proposta da I Conferência Universitária de Ações Afirmativas da Uneb, em 2011”, avaliou a docente da Uneb, lembrando a necessidade de continuar a luta para barrar as ameaças do governo Bolsonaro, que inúmeras vezes se manifestou contra a política de acesso às universidades por negros.

 

Uerj

A Uerj foi a primeira instituição de ensino superior do país a adotar as cotas. Com a aprovação, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), da lei nº 3.524/2000, a instituição passou a reservar 50% das vagas para estudantes egressos de escolas públicas. Um ano depois, através da lei nº 3.708, começou a destinar 40% das vagas para candidatos autodeclarados negros. Oito anos mais tarde, via lei nº 5.346/2008, unificou as duas em uma nova legislação estadual. A primeira turma foi contemplada no ano de 2003. 

 

Compartilhando da mesma opinião de Marluce de Lima Macêdo (Uneb), a professora Rosineide Cristina de Freitas (Uerj) endossou que as cotas representam uma reparação histórica à população negra, prejudicada no acesso aos direitos sociais devido ao período da escravidão no Brasil. A servidora da Uerj também confirmou a existência do racismo nas universidades e defendeu que o sistema de cotas permitiu que a população negra tivesse as mesmas oportunidades das pessoas não-negras. 


Em sua fala, Rosineide Cristina de Freitas acrescentou que é preciso ampliar as políticas afirmativas para entrada e permanência dos negros no ensino superior. Como exemplos, citou a elaboração de projetos interdisciplinares de extensão que reflitam a realidade desta população, a desburocratização do acessos às diversas bolsas e a disputa, para o orçamento das universidades, de recursos para o desenvolvimento de ações voltadas aos negros. “Temos de pensar em enfrentamentos maiores e mais definitivos. As cotas existem, mas quando há a destinação de verba para as instituições públicas de ensino superior, nós nunca somos prioridade”, denunciou a docente da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, convidando o conjunto da população brasileira à luta. “A universidade precisa se descolonizar e este processo perpassa pelo enfrentamento por parte de todos”, conclamou a docente da Uerj. 

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