Exclusão da população carcerária do grupo prioritário para a vacina de covid-19 é a institucionalização da pena de morte

18/12/2020

Divulgado no último dia 09, o Plano de Vacinação apresentado pelo Governo Bolsonaro exclui a população carcerária dos grupos prioritários que estão previstos para serem imunizados contra a Covid-19. Amplamente criticado por especialistas de saúde, que sequer foram consultados sobre o texto final antes que ele fosse enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF), o Plano parece ser a narração de um grande ato do trágico drama que teve início com a eleição do entusiasta de “bandido bom é bandido morto”.

Cheio de lacunas e incertezas, o Plano Nacional de Operacionalização de Vacinação contra a Covid-19 reflete a má condução desempenhada pelo governo federal, que desde o início da pandemia não apresentou soluções adequadas para conter a grave crise sanitária e econômica, e se utiliza de mentiras e negacionismo para descredibilizar a ciência e omitir os fatos. O resultado disso até o momento são mais de 185 mil mortes, aumento substancial do desemprego, miséria e fome.

A exclusão da população carcerária do grupo prioritário é mais uma das perversas ações deste governo que pode trazer consequências irreversíveis e nos convida novamente para discutir o racismo institucional no Brasil. Dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que 66,7% das pessoas aprisionadas são negras, dois terços do total. Comparado aos últimos 15 anos, o número de negros encarcerados aumentou enquanto o de brancos caiu, significativamente. Em 2005, negros eram 58,4% desse grupo enquanto brancos eram 39,8% e passaram a 32,3%.

Segundo a médica e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Andreia Beatriz, que trabalha há quinze anos no sistema carcerário e atua no complexo penal da Mata Escura, em uma unidade de saúde prisional na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, a presença maior de negros nos cárceres é uma realidade evidente:

“É sabido e é público que a população prisional é formada em sua maioria por pessoas pretas e pardas que são agrupadas como negras porque já vivem um processo de exclusão e negação de direitos bem antes do sistema de justiça criminal pensá-las ou dentro do processo de seletividade do sistema de justiça criminal, e, indo um pouco mais além, dentro de um processo de genocídio do povo negro. Esse processo de genocídio do povo negro não se inaugura nessa gestão; ele ocorre há muito tempo. São muitas ações que colocam esta população numa situação de vulnerabilidade, a começar pela negação de indultos em alguns momentos da gestão do sistema prisional do Brasil até agora com a negação do direito de acesso à imunização, sobretudo nessa situação de vulnerabilização dadas as condições que as pessoas se encontram dentro do sistema prisional”, afirma.

Andreia Beatriz, que também é coordenadora do “Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta!” explica que quando se fala do sistema prisional é preciso levar em consideração que ele engloba mais do que as pessoas aprisionadas; inclui os agentes de segurança, de saúde e serviços gerais. Além disso, “estima-se que a cada pessoa encarcerada tenha quatro pessoas em seu entorno, familiares, comunidade a que pertence”, complementa.

As superlotações já são um agravante para os cuidados com o Covid-19 pois colocam toda esta população em risco. Em 2019, segundo dados do estudo Sistema Prisional em Números, a taxa de superlotação carcerária chegava a 166%, eram 729.949 aprisionados, para 437.912 vagas. Segundo dados atualizados do Banco de Monitoramento de Prisões, neste ano, a população carcerária atinge um total de 812 mil pessoas em regime fechado, semiaberto e quem cumpre pena em abrigos. “Quando a gente sabe que o que está estabelecido em relação à efetividade do combate à covid ainda é o distanciamento social, a higiene que, às vezes, é impossível em determinadas unidades prisionais dadas as condições de insalubridade e a insuficiência de recursos que deveriam ser fornecidos pelo Estado brasileiro, pelos governos estaduais; a gente submete essa população privada de liberdade a um ciclo de negação de direitos. Privar mais de 800 mil pessoas do acesso a imunização contra covid 19, é privar essas pessoas do seu direito de ter acesso a saúde, uma vez que estas pessoas também estão em uma maior vulnerabilização”, afirma.

Para a professora Andreia Beatriz, é preciso enfatizar que o projeto racista e genocida do estado brasileiro vai além da gestão atual. “Esse projeto de genocídio contra povo negro começa desde o processo do sequestro do continente africano, se estende ao longo do processo de escravização muito brutal e com todas as repercussões que a gente sabe que conduzem a população negra a essa situação de vulnerabilidades que conhecemos hoje. E nesse contexto, o que tá acontecendo em relação ao plano de vacinação hoje é a ratificação desse projeto de genocídio, nesse projeto de negação de direitos, que eu gostaria de dizer mais uma vez, não se inicia nesse momento, mas que nesse momento se confirma um conjunto de ações que tende a colocar a população em privação de liberdade, com destaque para a população negra, nesse constante ciclo de vulnerabilização”, conclui.

Política de Mortes nos Sistema Carcerário

A militância em defesa das pessoas privadas de liberdade tem atuado em várias frentes para conseguir amenizar os danos provocados por um Estado que negligencia assistência às populações vulnerabilizadas, conduzindo grupos inteiros à morte, é o que explicita Felipe Freitas, doutor em Direito, Coordenador Adjunto do Núcleo de Pesquisa do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (GPCRIM UEFS). 

“Desde o começo da pandemia os militantes do movimento negro; as organizações de familiares de pessoas privadas de liberdade e os pesquisadores e pesquisadoras do campo têm assinalado que a política do governo federal e do poder judiciário para o sistema prisional produziria muitas mortes. Desde o começo da propagação do vírus temos dito que era necessário: 1) reduzir o número de pessoas presas; 2) criar salvaguardas com medidas de higiene e limpeza dos espaços e 3) separar os presos considerando idade; doenças pré-existentes. Nada disso foi executado corretamente e não houve política de testagem e nem um plano de emergência para casos de hospitalização”, afirma.

Felipe Freitas enfatiza que é fundamental que as pessoas privadas de liberdade sejam vacinadas imediatamente após a aprovação de uma vacina e que haja monitoramento do número de casos com testagem efetiva ou a situação pode ganhar ainda resultados piores com a influência da população em geral que vem dispensando as medidas de segurança, ampliando o número de casos.

“Nos levantamentos que temos feito no âmbito do projeto Infovírus temos acessado relatos assombrosos de subnotificação e de violação do direito à comunicação dos presos no contexto da pandemia. Com o afrouxamento das regras de distanciamento social provocado pela expectativa de imunização imediata após o início da vacina, temos o risco de um surto ainda maior nas unidades prisionais”, enfatiza.

A reunião marcada para a última quarta (16) que discutiria a exclusão da população carcerária do Plano de Vacinação foi cancelada após a ministra do Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que convocou a reunião do Comitê Nacional de Combate à Tortura, não aparecer. Integrantes de organizações não-governamentais pediram a inclusão desse ponto de pauta na agenda, o que não foi feito pelo ministério, ainda assim, os representantes das ONG’s pretendiam levar a discussão para a mesa. Nenhum representante do governo compareceu. 

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